O ressentimento na política brasileira

Idelber Avelar
7 min readMay 12, 2020

Não há categoria afetiva que tenha cumprido um papel tão central na política brasileira da última década como a de ressentimento. Em amplos círculos, o termo passou a ser ubíquo e a servir para designar um leque de lugares afetivos diferentes. Ressentimento é, na verdade, um conceito bastante rico, que valeria a pena tentar salvar, antes que ele se converta em xingamento puro e simples.

Para Friedrich Nietzsche, o ressentido é, ante tudo, um escravo da memória. Fixado no passado, incapaz de esquecimento ativo, o ressentido sempre atribui ao outro a responsabilidade pelo seu estado. Ele se entende como um impotente cujo lugar foi determinado pelo outro. Como o ressentido é incapaz de se vingar, é fraco demais para responder e rebater, ele re-vive eternamente uma vingança que jamais vem. Como disse Maria Rita Kehl em um bonito livro sobre o tema, o derrotado só se torna um ressentido quando ele deixa de se identificar como derrotado e passa a se definir como vítima, sobretudo como vítima inocente de um vencedor que, ali, passa a ocupar o lugar de culpado.

É verdade que a superação do ressentimento, em Nietzsche, passa pela tarefa do esquecimento ativo. Mas, nessa expressão, as duas palavras são importantes: o esquecimento ativo não é a amnésia pura e simples, não é fingir que algo não aconteceu, não é um simples passar a borracha. O esquecimento ativo é um esquecimento decantado, que já passou pela memória.

Ao longo da última década, os termos “ressentimento” e “ressentido” foram cooptados pela milenar vocação amnésica brasileira. Mais ou menos como o termo “revanchista” era usado como xingamento durante a pós-ditadura brasileira, no pós-Junho, bastava que você fizesse um pequeno exercício de memória sobre a continuidade das atrocidades brasileiras sob os governos lulistas para que viesse lá de novo o rótulo: “ressentido!” Este é um primeiro dado nem sempre óbvio. O termo "ressentido", no Brasil da segunda década do século XXI, abandonou o terreno da análise e adentrou o universo dos insultos e dos pseudo-diagnósticos.

Ao longo do pós-impeachment e do governo Temer, petistas e lulistas voltaram a prestar atenção, por exemplo, nos frequentes massacres indígenas no Brasil. Quando algum memorioso mais desavisado lembrava que os massacres indígena e os etnocídios via hidrelétricas abundaram no governo petista, não faltava nunca o adendo: “ah, não se deixe levar pelo ressentimento”. Ora, é claro que são bem-vindas quaisquer pessoas que queiram se juntar a nós, que denunciamos esses massacres há muito tempo. Mas, se depois da denúncia, a pessoa escrevia “este é o Brasil de Michel Temer”, a obrigação de qualquer um que estivesse na causa por algum tempo era apontar que o governo Dilma bateu todos os recordes de massacres indígenas. Trata-se da simples correção de uma implícita falsificação.

É irônico que aqueles que abusaram desse termo ao longo da década tenham sido, sobretudo, os petistas e lulistas. Trata-se de algo curioso porque a característica essencial do ressentido, como explicado acima, é ver todo o planeta como culpado por suas derrotas. E foi exatamente a esquerda que governou entre 2003 e 2016 que se especializou em responsabilizar a mídia, os coxinhas, os EUA, a oposição, os “golpistas” ou os críticos que “fazem o jogo da direita” por seus fracassos e derrotas. Mesmo em um contexto em que tiveram o controle do Executivo, a prerrogativa de nomear 73% da Suprema Corte, a maior bancada da Câmara, o controle dos movimentos de moradia e de reforma agrária, enorme influência nos movimentos identitários, hegemonia no pensamento universitário e posse de dezenas de mídias “alternativas”, mesmo nesse contexto, a culpa era sempre de outrem.

Na segunda metade da década, então, o discurso petista havia chegado a essa curiosa situação: se você quisesse saber mesmo por onde grassava o ressentimento no pós-impeachment, o melhor lugar para se procurar eram justamente as pessoas que andavam distribuindo rótulos de ressentido a qualquer um que fizesse um exercício de memória. Configurou-se essa curiosa cena, na qual os grandes ressentidos eram justamente os que andavam usando "ressentimento" como xingamento para bloquear o trabalho da memória. Tão acostumado a vencer, o lulismo não conseguiu sair da posição de vítima ao sofrer a primeira derrota.

Enquanto isso, um genuíno caldo de ressentimento se cozinhava no Brasil Profundo em torno ao antipetismo. Esse caldo desembocaria no bolsonarismo. Cientistas sociais de estirpe lulista tentavam entender o bolsonarismo como "política do ódio", como se fosse óbvio que há mais ódio nele que em outros movimentos. Continuava, no entanto, pouco trabalhada a categoria que tinha potencial descritivo real para se entender o bolsonarismo, o ressentimento.

Ao lado de bases políticas convencionais nas bancadas da bala, da Bíblia e do boi, uma força até então pouco conhecida pelas ciências sociais mostrou-se essencial na condução de um inexpressivo deputado extremista, misógino, militarista e homofóbico à presidência da República, e fortemente ancorado no ressentimento: o Partido dos Trolls. A principal operação retórica da trollagem de internet é a ambiguidade: raramente se determina se o que está sendo dito é sério ou não, o que garante denegabilidade automática caso o enunciado seja questionado ou desmentido, além de oferecer o humor necessário para manter a atenção do espectador/leitor no mundo volátil das redes. A extrema-direita se tornou fluente nessa língua em um contexto no qual sua agressividade era retroalimentada pela cultura do cancelamento na esquerda. Foi nessa dinâmica que o bolsonarismo conquistou o domínio das redes sociais, das que importam, pelo menos: o Whatsapp, o YouTube e o Instagram, já que o Twitter é pra quem se importa com furos e ninguém que importa se importa com Facebook.

“Redes sociais” nem sempre foi sinédoque de “internet”. A ascensão do lulismo em 2003 aconteceu durante a consolidação dos primeiros blogs brasileiros, não apenas sobre política, mas sobre viagens, esportes, culinária, variedades. Esse momento de otimismo e criatividade com o potencial das redes para democratizar as comunicações não se desenrolou livre de captura pela máquina de cooptação lulista–como seria o caso nos chamados blogs progressistas, formados por ex-jornalistas, apparatichiks do PT ou profissionais da Rede Record, então louvada pelas bases lulistas como alternativa à Globo, antes do previsível giro bolsonarista de Edir Macedo. Na explosão da juventude em Junho de 2013, porém, a mobilização acontecia não mais por meio de blogs, mas pelas redes. Nessa passagem da utopia disseminada em URLs abertas para os cercadinhos murados do Facebook, um enorme naco da então jovem e libertária geração dos blogs se perderia. Naquele momento, pelo menos em algumas comarcas, como o YouTube, a hegemonia já era claramente de direita que articulava seu discurso a partir do ressentimento.

Foram se congregando então os atores da internet que constituíram o caldo de cultura bolsonarista: as contas de Twitter e Facebook dos perfis dos filhos de Bolsonaro, alunos de Olavo de Carvalho, YouTubers de direita, comunidades de incels (jovens “celibatários involuntários”, muitos caracterizados por forte misoginia), terraplanistas, monarquistas e associações que ganharam impulso a partir da mobilização para depor Dilma Rousseff — Movimento Brasil Livre (MBL), Revoltados Online e Vem Pra Rua. Pode ser surpreendente para pesquisadores formados na bibliografia tradicional das ciências sociais perceber a intensidade do ressentimento que se gestava ali contra a “hegemonia cultural da esquerda”. Do ponto de vista da pesquisa efetivamente feita na universidade, afirmar que nela vigorava uma “hegemonia marxista” chega a ser uma caricatura. O autor deste artigo, por exemplo, fez bacharelado e licenciatura em Letras na UFMG, e de 1986 a 1990 não teve um único professor marxista. Hoje eles são ainda mais raros.

Isso não quer dizer que a percepção olavista-bolsonarista, ancorada no pânico anticomunista, seja simplesmente um delírio. Ela é uma instrumentalização conspiratória e distorcida de um ressentimento que tem fundamento real. Esse caldo de ressentimento ancora-se em uma história de exclusões ou auto-exclusões do aparato educacional (seja por motivos econômicos ou familiares), em ausência de responsabilização penal ou cível aos torturadores da ditadura (o que oferece ao olavismo o vácuo em que proliferam um sem-número de postulados negacionistas) e na impossibilidade de uma representação de direita auto-declarada no interior do aparato político. Encharcado de desmemória, o sistema político brasileiro se arrastava na premissa implícita de que “direita” é sinônimo de ditadura militar e ódio a pobres. Tratava-se de um não-reconhecimento da possibilidade de uma leitura legítima do mundo que fosse economicamente de direita. A própria esquerda reproduziu a desmemória ao realizar a sinédoque a partir da qual se podia exigir o cancelamento das mais moderadas e razoáveis personalidades conservadoras ou liberais: “como a ditadura militar é odiosa, retirou renda dos pobres, e era de direita, toda direita tende a ser ditatorial e odeia pobres”. O raciocínio implícito era esse mesmo.

No Brasil, a consigna “a vítima tem sempre razão” instalou-se na cultura identitária lulista apesar de, ou graças a, uma gritante tautologia: nessa cultura, decidir se uma pessoa tem razão ou não implicava, em primeiro lugar, decidir se ela foi vítima ou não. “A vítima tem sempre razão” significa, portanto, “a vítima é sempre vítima” ou “sempre tem razão quem tem razão”. Garotos imberbes no 4chan perceberam a tautologia uma década antes dos apparatchiks identitários do lulismo. “Querem vítimas? Vocês verão discurso auto-vitimista com intensidade jamais vista! E quem vai dizer que a vítima não tem razão?”

Desde então, o bolsonarismo tem levado a escola do ressentimento a píncaros de extremismo. Sempre vítimas de outrem, objetos de alguma conspiração maligna, perseguidos: a linguagem que permite o funcionamento do bolsonarismo está encharcada na mitologia do crucificado, a quem com frequência se associa Bolsonaro. O longo processo através do qual foi cozinhado esse ressentimento passou, em grande medida, ignorado pela esquerda universitária e pelas ciências sociais. Estamos, hoje, de alguma forma, ainda correndo atrás.

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Idelber Avelar

Autor de Alegorias da Derrota (UFMG, 2003), Figuras da violência (UFMG, 2011), Crônicas do Estado de Exceção (Azougue, 2015) e Eles em Nós (Record, 2021)..